Autoestima e o Si mesmo
- Miriele Alvarenga
- 3 de dez. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 23 de jan. de 2024

A frase “você precisa amar a si mesmo” está de tal forma tão pulverizada em tudo que vemos e ouvimos que não importa muito mais o significado profundo ou a relevância, já não parece mais nos sensibilizar ou provocar reflexão. Esquecemos, no entanto, de uma pergunta que precede esse mandamento meio desgastado e superficial: Quem é o si mesmo dessa frase?
Existe um caráter incansável nesse imperativo e, quando ao longo de nossas vidas vamos percebendo que existem diversos aspectos nossos que gostaríamos de mudar, o tom de dever que a exclamação enaltace quando diz “você precisa”, automaticamente já gera um cansaço. Até porque, somos o tempo todo bombardeados por todos os lados com modelos idealizados de tudo: aparência, forma de pensar e viver, objetos, padrões de existência, expressão e consumo.
Na ânsia de amar a si mesmo vem quase uma nova ditadura condicional para a felicidade como se aí morasse a resolução integral dos “problemas”. E o nosso momento não tolera o tempo das coisas naturais. Desejamos, tal qual o efeito instantâneo do clique, uma solução para o profundo desamor que nutrimos por nós. Passamos, muitas vezes, ao invés de buscar o si mesmo dessa oração, a enaltecer e inflar o “você” da mesma frase. Assim podemos cair na armadilha de inflar o ego, ou viver de forma constante e indiferenciada, uma persona colada ao próprio rosto.
A inflação do ego, seria perceber e eleger o ego como poder único e gestor magnânimo da psique, fazendo com que a razão e a consciência imperem absolutos num todo psiquico que, na realidade, é também irracional e inconsciente. Já, atribuir esse poder à uma persona, seria eleger uma de nossas facetas ou máscaras sociais como a “preferida” e forçar sua existência em toda e qualquer situação, ambiente ou relação. Por exemplo: a estudiosa do assunto X. Ser a estudiosa na sala de aula, na hora da prova ou quando seu conhecimento sobre algo é solicitado, é extremamente saudável e esperado, é quando essa persona é requisitada e precisa de fato atuar. Mas na roda de amigos no bar, se a estudiosa retirar sua enciclopédia e começar a vociferar conceitos de qualquer natureza, pode ser que haja uma espécie de rigidez.
Quando você diz: “ eu sou ”, imaginando apenas o ego, existe uma possibilidade de inflação, e quando o que vem depois do eu sou, te aprisiona numa única coisa, ou passa a ditar as regras da sua vida e convivência, daí é que podemos pensar que existe uma dificuldade de trocar de máscara quando necessário.
Essa breve drigressão é para que eu possa, a diante, diferenciar o amar a si mesmo do amar o ego ou a persona. Refletindo a partir disso, vamos voltar para a frase.
“Você precisa amar a si mesmo!”
Mas quem é você? E quem é o Si mesmo? Quero aqui trazer a proposta de ampliação no sentido de olhar para você como se não fosse apenas o ego, e olhar para o si mesmo como se fosse algo que transcende você (ego), ou seja, algo EM você.
“ Ultrapassa o poder da nossa imaginção a clara imagem do que somos enquanto si mesmo, pois nesta operação a parte deveria compreender o todo. É impossivel chegar a uma única consciência aproximada do si-mesmo, porque por mais que ampliemos nosso campo de consciência, sempre haverá uma quantidade indeterminada e indeterminável de material inconsciente, que pertence à totalidade do si mesmo. Este é o motivo pelo qual o si mesmo sempre constituirá uma grandeza que nos ultrapassa.”
C. G. Jung
Podemos estar mais ou menos distantes a depender do quanto vamos delegando as ações do ego ao si mesmo, ou self como Jung chamou. O Si mesmo, é aquilo que “sobra” quando todos os meios externos para tentar explicar quem somos para o mundo, se esgota. Seria a parte em nós a quem nos entregamos quando todas as esperanças e possibilidades parecem ter se extinguido, não existe mais garantia nenhuma de nada no mundo. Mas o Self, o si mesmo, não é do mundo e você, bem, você ESTÁ no mundo. Portanto, quem somos nós se jamais pudéssemos completar a frase “eu sou…?
Esse amor por si mesmo, então, seria uma conexão amorosa e confidente de você com o si mesmo, em parceria e união como quando unimos nossas mãos em prece; uma parte de você com outra parte de você. Esse processo é um caminho, e não pode ser comprado, resolvido como uma equação e, muito menos, realizado por alguém que não seja você. Saber quem somos, seria então uma condição para se amar e o amor seria uma condição para saber quem somos. Reconhecer e integrar nossas partes inconscientes, as que julgamos bonitas e as que descobrimos completamente desfiguradas, verdadeiros monstros, olhar para a dinâmica pendular e perceber os movimentos internos sem sentenciar de forma cruel o que vem. Caminhar na confiança e na desconfiança, sustentar o que desagradável até encontrar uma via de acesso criativa, aceitar e revoltar-se, saber que não está sozinha não importa onde vá e ir cada dia olhando um pouco mais para essa mala que carregamos na jornada; o que tem dentro? É meu? Não é meu? Preciso continuar caregando? Seria construir um chão firme e depois saltar sem que ele esteja em seu campo de visão.
“Podemos traduzir individuação por tornar-se si mesmo ou realizar-se do si-mesmo. “
C.G.Jung
Jung chamou esse caminho de processo de individuação, que é o diferenciar-se do coletivo para entrar em comunhão com o si mesmo, que é um “você divino” e único. Não é, de forma alguma, uma construção ainda mais forte da persona como acabamos vendo por aí, quando reforçamos um comportamento não saudável, uma forma intransigente de se relacionar ou quando vamos esculpindo nossas aparências para caber nas pressões estéticas do momento, ou ainda quando consumimos ou buscamos prazeres imediatos para provar o “bem” que nos fazemos.
“A meta da individuação não é outra coisa senão a de despojar o si-mesmo dos involucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo das imagens primordiais” C.G.Jung
“A individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por “individualidade” entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. “ C. G Jung
Para Jung, existe em nós uma propensão inata a buscar o si mesmo e realizar o processo de individuação, pois seria uma espécie de retorno ao todo psiquico de onde viemos só que agora, com toda a bagagem das experiências do mundo em carne e com um tesouro precioso que pode enriquecer toda nossa aldeia, ou seja, com algo único e valioso para compartilhar. E lembremos, esse algo pode ser o seu jeito de sorrir docemente, não precisa ser a invenção da roda.
“ Assim, apesar da consciência do ego identificar-se inicialmente com a persona – essa figura de compromisso que representamos diante da coletividade – o si mesmo inconsciente não pode ser reprimido a ponto de extinguir-se” C.G.Jung
Parece imperativo, novamente em nosso tempo, o chamado para que o amor por si mesmo ou PELO Si mesmo, como proponho aqui, se realize. Será que se fizermos essa aliança com o Si mesmo seríamos mais capazes nos amar, tanto a nós mesmos como uns aos outros? Será que a difusão dessa frase vem de uma necessidade cada vez maior em fazer essa ponte com o Self para que as consciências possam seguir integrando e expandindo? Não sei, mas achei interessante trazer aqui essa reflexão, pois percebo que esse mandamento está ligeiramente banalizado e corre sério risco de ter sua força perdida de forma ardilosa, mais uma vez para os cultos egocêntricos e capitalistas. Agora, olhando para o Si mesmo da frase com outros olhos, finalizo com um chamado antigo ao amor pelo Self que reverbera talvez nessa que nos permeia hoje.
“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo teu espírito” Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo, semelhante a este é: “Amarás teu próximo como a ti mesmo.”
Mateus 22:37-39
Somos mais do que o Eu!
Miriele Alvarenga | Analista Junguiana
Ótima reflexão! Obrigada por compartilhar! Como toda reflexão pede um tempo. Mas usando daquela parte de mim que desconhece reflexão coloco aqui o que gostei mais: saber que não estamos sozinhos, mas constantemente desconhecemos ,quem está conosco, pois isso exige parar, silenciar, tão difícil ultimamente. A maneira elegante de abordar um assunto tão profundo. E a ligação do cotidiano que nos assalta com o divino já tão esquecido. “ Amarás……” Amei o texto! Me amo! Te amo!😘❤️