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Deus pai

  • Foto do escritor: Miriele Alvarenga
    Miriele Alvarenga
  • há 18 horas
  • 4 min de leitura



Ele disse uma frase que eu já ouvira do meu pai tantas vezes… Disse que eu “levava jeito para a coisa”, sem que eu perguntasse nada! Era como ouvir a mesma frase de Deus! Meu corpo tremeu, minha cabeça travou e por alguns segundos e perdi toda casca de mulher adulta, todas as palavras se foram do meu repertório, e eu brinquei: “Não me iluda!” Será que eu achei para o que sirvo? Pensei. Mas aquilo, ao mesmo tempo que me fez sentir o insight de uma grande revelação, me fez lembrar as tantas vezes que persegui o que acreditava reservar um lugar para mim no mundo. Hesitei, temi, mas também quis contar para todo mundo e gritar a plenos pulmões: Ele acredita em mim!

Ouvir isso do homem mais importante da sua vida é inebriante, mas àquela altura eu já tinha maturidade para saber que a ilusão, apesar de saborosa, tira os pés do chão para sempre, e, quando nos damos conta, ela impermeabiliza os poros de todos os sentidos e nos distancia da única coisa capaz de experienciar nossos sonhos… o eu. A voz da consciência nem sempre soa agradável, mas é assim quando a gente começa a se amar, ou pelo menos quando começamos a perceber soando o amor próprio no dialeto da vida.

Igualzinho quando eu era criança, sozinha, no meu quarto, eu comecei a criar mundinhos inteiros ao redor daquele novo amor, “acho que dessa vez é de verdade”, pensei,  ainda assim, deixei bem distante de mim para que suas cores nunca tingissem a realidade e assim pudesse ficar para sempre num pedestal, onde eu pudesse olhar de joelhos, chorar e querer. Será que ele me vê se eu for grande e potente, ou só quando preciso da força dele e pareço pequena e frágil. Eu sempre vou precisar dele! Sempre, nesse mundo onde sou sua filha.  

Ainda me lembro do dia, obter aquela validação e sentir o meu rosto ferver foi a prova de que era por ela que eu esperava, e isso me deu vergonha. Perdi a fala, parecia um sonho realizado, era como a grande oportunidade de viver, existir e ser vista por ele, um Deus. Hoje, olhando para trás e para dentro,  era só o que eu queria e quis a minha vida toda. Que ele não só olhasse para mim, mas que me visse e me desse uma missão:

- Pai! Quem sou eu?

E meu olhar continuava nebuloso pra mim e atento para onde ele olhava.

              Talvez por isso quis estar dentro da TV, busquei ser “um cara legal”, alguém admirável por ele, e talvez por isso me empolgava tanto a sensação de ele notar em mim um talento qualquer. Evitei balburdia e boemia, mas admirava isso nas histórias, quando um ícone do rock se drogava até a overdose e milhares de fãs choravam sua perda, eu me realizava. Viver tudo; o auge e o declínio!

E mais um vez veio aquela sensação de talvez ter acertado o alvo. Eu comecei a descida, sei que não é de hoje, mas apesar de não haver glamour ou visibilidade, mesmo que eu não seja premiada ou ovacionada por multidões fora de mim, eu posso sentir que estou num quarto que tem uma cama confortável para deitar e descansar. É, nem toda sensatez ou pessimismo foi capaz de me impedir de dar mais um passo e tinha muito tempo que eu não sentia tanta segurança para ir mais e mais profundo em algo, em mim…

Eu estou vivendo mais uma vez, e, desta vez é diferente de todas as outras, como sempre. Eu ainda não sei pra quê a gente vive, não compreendo um monte de coisas que me tiram o sorriso, sinto a alma do mundo precisando de mais e mais pessoas e não estou certa se é saudosismo de minha geração ou se de fato a humanidade corre perigo e caminha para o colapso.

Eu cansei de tentar agradar e também de tentar decepcionar, só para ser vista, mas sei que vou escorregar e que isso, hora ou outra pode me ocorrer, porque uma das coisas que me salva nos piores e melhores dias, é saber que esses deuses estão dentro de mim e pouco posso fazer a respeito. Hora eu vou enrubescer e parecer uma menininha sendo vista pelo pai, outras vou endurecer e paralisar diante dos dilemas, em alguns momentos eu vou passar batom e me sentir desejável, e em outros eu vou me olhar no espelho e odiar minha cara cansada e envelhecida.

E a contradição é que naquele dia, enquanto eu vivia a validação de alguém tão importante para mim, precisei repetir muitas vezes aqui dentro na mesma proporção que me alegrava e flutuava me sentindo especial:

“ Não é nada demais”.

 E esse caminho é de terra. Eu sou muito especial e completamente ordinária, assim é bem mais possível existir, bem mais. E mesmo assim, aparentemente caminhando por um chão de terra, eu sigo indagando a cada passo que dou:

             - Pai, quem sou eu?

 
 
 

1 Kommentar


marciosaga
há 8 horas

Bom dia!

Que texto potente! Adorei.

Grato.🙏🏽

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