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Possuída por um espírito no dia dos mortos!

  • Foto do escritor: Miriele Alvarenga
    Miriele Alvarenga
  • 2 de nov. de 2023
  • 5 min de leitura

Atualizado: 2 de nov. de 2023

Que bom momento para escrever sobre o que Jung falou a respeito de espíritos e suas implicações na psique humana! Sentada cheia de grifos e ideias. Como correlacioná-las? Como traçar uma linha de pensamento? Como chegar onde quero? E Será que sei onde quero chegar?

Citações e construções de pensamento no teclado tomando forma no monitor do meu computador e cada avanço que eu dava em escrever parecia mais e mais impossível construir de forma coesa algo sobre o tema. Minha cabeça começa a doer e começo a chorar, já não consigo me concentrar no que estou fazendo porque o sentimento de incapacidade e impotência são mais fortes. Todo e qualquer fluxo de ideia ou pensamento de força para seguir é abruptamente bloqueado por frases mentais como: “Será que isso está mesmo de acordo com Jung?” “Quem será que vai ler e criticar?” “Você já fugiu da sua ideia inicial e está perdida”, “Você não consegue”, “Desista”, “Isso vem mesmo do seu coração ou você está tentando ser acadêmica para ser creditada?”

Mas um detalhe é muito importante aqui. Enquanto essas vozes falavam comigo elas não usavam o pronome você, como se fossem outras, elas usavam indiscriminadamente o pronome “EU”.

Nesse ponto eu parei e saí da situação para observar o que estava acontecendo. Foi quando decidi então usar a minha “possessão” como exemplo. Não quero em absoluto fazer esse escrito sobre mim, mas esse acontecimento me chamou a atenção justamente para o que eu desejava escrever. Um pouco sobre o que Jung fala de ESPÍRITOS!

Dentre as diversas concepções possível da palavra espírito para diversas culturas, algo existe em comum em todas elas. O espírito não sou eu! Os espíritos estão separados de mim e podem, me possuir, me dominar, posso vê-los, sentir sua presença, sonhar com eles, ou acreditar que aqueles que morreram, agora, enquanto espíritos, vem, ou me assombrar ou me auxiliar a depender de sua “natureza”.

Se considerarmos esses fenômenos como psíquicos, o fato de os espíritos agirem como influências externas sobre nós, corroboram para o pensamento de Jung sobre a psique não ser uma unidade indivisível, ou seja, composta por mais partes do que unicamente o que chamamos de EU. Há outros em nós! A estes outros Jung chamou complexos.


“ Sob o ponto de vista psicológico, os espíritos são, portanto, complexos inconscientes autônomos que aparecem em forma de projeção, porque, em geral, não apresentam nenhuma associação direta com o eu.”


“ É justamente essa superioriade sentida com tanta clareza que confere ao fenômeno do espírito um caráter de revelação absoluta – certamente uma qualidade perigosa, pois o que poderíamos talvez chamar de consciência superior nem sempre é “superiror” do ponto de vista de nossos valores conscientes, mas muitas vezes contrasta violentamente com nossos ideias aceitos.”


Jung deixa claro em nota que isso não é uma afirmação metafísica sobre espíritos, pois a psicologia não se ocupa com as coisas como elas são em si mesmas, mas exclusivamente com a maneira como os indivíduos as imaginam.

Portanto, percebo que o que muitas vezes chamamos de vivenciar a espiritualidade, está ligado a perceber e assumir o que está além de nós, ou além do EU, dando voz a essas entidades separadas que surgem para interferir em nossas vidas de forma tão real, afinal são percebidas no corpo físico e implicam atitudes. Elas podem ser sim pessoas que já se foram, afinal de contas, o papel de nossa ancestralidade é de fundamental interferência, uma vez que herdamos estruturas de quando estávamos na esfera psíquica de nossos pais e até depois, já com alguma consciência, padrões que nos são ensinados e incutidos pela família, instituições ou amizades. Uns bons e outros nem tão frutíferos assim para realização da nossa alma. Mas talvez viver seja sobre isso, ir encontrando nossa alma no espírito.


“Há muitos espíritos luminosos e tenebrosos. Por isso deveríamos estar preparados para aceitar a concepção de que o espírito não é algo absoluto, mas relativo, que precisa ser completado e aperfeiçoado pela vida.”


Os espíritos não tem apenas essa implicação nociva que nos toma como uma força incontrolável capaz de fazer coisas horríveis ou nos sujeitar a sofrimentos e sensações como a que senti de impotência ou incapacidade.

A palavra espírito tem raíz etmológica do Latim “spiritus”, significando respiração ou sopro, mas também se refere à coragem, vigor. Ele também inspira a vida, a possibilita e está também sob nossa gerência nos entregar ou não aos impulsos do espírito observando as sugestões que ele nos dá nos diversos momentos de nossas vidas, se são de privação ou de fluxo e benevolência, tanto para com os outros como para nós mesmos.


“É o espírito que confere um sentido à vida humana, criando-lhe a possibilidade de se desenvolver ao máximo. Mas a vida é indispensável ao espírito, porque sua verdade não é nada se não pode viver.”


Hoje, no dia nos mortos eu fui possuída por um espírito que me falou sobre minha impotência, mas também acabei por confrontá-lo perguntando:

- E se eu fizesse de outra forma?

Hoje, o que me inspirou escrever, foi a sensação forte desses outros em mim. Foi esse pensamento que Jung defendeu sobre a infinidade da vida, que passa por nossos corpos com a manifestação do espírito, pois aquilo que morre não deixa de ser. Esse dia dos mortos me fez lembrar e homenagear todos que estão mortos e que vivem em mim, aqueles que celebro vivendo, aqueles que sedimentam em mim os lugares que não estive, mas dos quais me lembro em algum recôndito da minha alma e em meus sonhos visito assombrada pelas imagens que me causam. Hoje eu sinto minha carne como esse aglomerado de mortos que movem na dança de ser genuína.

O suor das minhas antepassadas, cada óvulo perdido e cada óvulo gestado, cada filho perdido e cada filho criado, cada lágrima de dor e também de felicidade, cada esforço de provação e cada gozo possível. Hoje me lembro da minha avó que comia as frutas podres para deixar as bonitas para mim e de suas mãos enrijecidas pelo trabalho, são também essas mãos que hoje escrevem esse texto através de mim. Talvez por isso haja uma dimensão penalizante em estar viva, porque, para aquele que esta vivo é misterioso compreender que as frutas frescas não são comidas só por mim, e também as podres, que continuam sendo comidas por muitos, também elas eu experimento. Eu sou também um acumulo de finais em percurso. Esse aglomerado de espíritos que sou me permite sonhar com lugares que nunca estive, ter memórias do que não vivi, e me permite sentir que minha vida é resposta também de morte. Que aquilo que me toma e me faz tremer e enrubescer, são mesmo os espíritos que se recordam por mim de algo que nunca vamos conhecer o início. Como é fácil se curvar diante do desconhecido quando podemos reconhecê-lo como imenso, tremendo e além, muito além.

E hoje, reconhecer os espíritos em mim concretizou esse breve texto.

Obrigada à todos os mortos!


“Por isto, creio que um espírito que esteja de acordo com nossos mais altos ideais encontra seus limites na própria vida. Por certo, ele é necessário à vida, porque, como sabemos muito bem, a pura vida do eu é sumamente inadequada e insatisfatória. Só uma vida vivida dentro de um determinado espírito é digna de ser vivida”


Miriele Alvarenga , analista junguiana


Referências:

O.C 8/2 A natureza da Psique – C. G. Jung

 
 
 

1 Comment


Marcelo Ortega
Marcelo Ortega
Nov 03, 2023

Fabuloso! Texto apaixonante!

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