Uma alma de volta ao mundo: Uma livre e breve impressão sobre o filme Pobres Criaturas
- Miriele Alvarenga
- 10 de mar. de 2024
- 5 min de leitura

Hoje é noite de Oscar e é claro que não consegui assistir todos os principais indicados... Mas ontem, aos 45 do segundo tempo, me permiti aquela experiência indescritível e maravilhosa de ir ao cinema sozinha para ver um filme que prometia entregas profundas sobre o universo feminino. Além disso, essa semana foi marcada pelo Dia Internacional da Mulher. Uma data que me desconforta muito enquanto mulher, não pelo que representa, mas pela forma como é "praticada" socialmente, reforçando alguns padrões normativos e destrutivos do machismo estrutural. E a esse ranço que me tomava, o filme trouxe tanta cor, acalento e esperança...
O filme Pobres Criaturas do diretor Yorgos Lanthimos, está sendo aclamado pela crítica e tem 11 indicações ao Oscar.
Que filme potente!
Ele integra de forma tão profunda, poética, metafórica e coesa as discussões desse tema, que considero uma obra prima revolucionária sobre uma mulher que se recusa a aprender a ser mulher enquanto papel social e determinações exteriores.
A atmosfera onírica e fantasiosa nos convida a imaginar um renascimento num novo mundo no qual uma nova chance é dada para a continuação de sua alma. Seu percurso de amadurecimento fica mais interessante quanto mais ela experimenta o mundo e isso se reflete inclusive na dinâmica, ritmo e contorno do filme.
Bella Baxter, a protagonista, chorou com profunda dor pela primeira vez quando se deparou com a desigualdade, a dor da fome, e a miséria alheia. A curiosidade por si mesma e pela vida não a permite chorar por dependência do afeto de outro. Ela não sabe o que é o amor ilusório que se constrói nas mentes das pessoas, porque ela vivência o tempo todo a força avassaladora pela vontade de viver e existir para si. Sua fonte de alegria e crescimento é seu corpo e a verdade de suas palavras fere as mentes e os corações doentes e cegos pelas muralhas sociais, culturais, morais e mórbidas de coisas sem alma.
Criada por um cientista, Dr Godwin, que ela chama de God (Deus em inglês) ela compreende o mundo com base no empirismo. Sua relação com as coisas é simplista, experimental e mais próxima da objetividade no início. A subjetividade surge com o tempo, mas ela se recusa a acreditar na incapacidade de transformação das pessoas e do mundo porque vive em sua pele a própria transformação. Segue, portanto fiel a nada e ninguém que não seja ela mesma. Não, uma pessoa ferida não irá abalar essa estrutura que ela sedimentou com experiência de vida.
No início de seu percurso, ainda muito inconsciente, ela recebe limites, restrições e muito afeto de God, o que em alguma medida, além de servir para protegê-la e construir seu ego e auto preservação, são fundamentais no futuro para dar força e coragem para Bella seguir suas aspirações. Mas a partir de um certo ponto, sua natureza a chama para o mundo e se torna obviamente impossível conter ou controlar.
"A velha ética é instrumento importante na construção da consciência humana. Ela representa uma fase necessária de transição, e , com a sua supressão e a sua repressão, faz parte das medidas defensivas da consciência contra o inconsciente." Erich Neumann
Tem um momento em nossas vidas que, em contato com o mundo, questionamos tudo aquilo que nos ensinaram sobre o mundo, pois caminhar com os próprios pés, é sempre diferente e único!
Bella, na grande maioria do tempo não grita, não agride e não violenta ninguém até que sua vida ou sua liberdade, essas que ela tanto preza, corram real perigo. Ela jamais manipula ou mente, e ninguém, ne no mundo de Bella e nem no mundo que vivemos está preparado para receber tais verdades honestas, que dirá de uma mulher. Ela pisa no mundo com a frieza científica e ingênua de quem está no mundo para desfrutar dele e conhecê-lo. Ela não coleciona conclusões dos outros, ela chega às próprias conclusões e isso a torna, como fala Neumann em seu livro " A nova ética" uma voz que traz uma revelação de individualidade em meio ao coletivo.
"A revelação da voz no indivíduo pressupõe um indivíduo com individualidade tão forte que pode se tornar independente do coletivo e de seus valores. Toda personalidade ética fundadora é herege, à medida que coloca a revelação da voz contra a consciência, enquanto esta representa a ética coletiva."
Erich Neumann
Homens sem alma ganham o mundo com poder e dominação, totalmente distanciados daquilo que os faz realmente fortes e humanos, mulheres inteligentes transformam o mundo com a curiosidade e a pureza avassaladora da alma que as habita e homens inteligentes estão ao lado dessas mulheres. E é com essa imagem, dessas figuras juntas em harmonia, que suspiramos na cena final dessa obra de arte. Onde com esperança vemos triunfar a beleza da natureza sustentada no mistério da ambiguidade, num jardim onde crescem seres complexos, diversos e cheios de possibilidades e no qual passamos então a nos perguntar: Quem afinal são as pobres criaturas?
Essa, para mim, é outra pérola do filme, Bella não sofre em suas experiências, ela as percebe e vive apenas como experiências, sem a carga emocional pesada que vem quando julgamos um fato como bom ou ruim. Ao se deparar com o que ela não gosta ou não prefere ela simplesmente age para transformar em prol de algo que seja mais positivo para ela. Isso não quer dizer que ela não sente dor ou não tem sentimentos, pelo contrário, ela tem muito, mas não sofre. Na minha percepção, muito porque ela é mais corpo do que mente, mais experiência do que pensamento. Quem sofre é a mente! Deste modo, me parece que ela não se vê como vítima das coisas que se passam com ela, ela apenas observa como, tal como um experimento, como foi observada por seu "pai". Diferente de seu amante Duncan, que está sempre entregue ao drama de suas percepções egocêntricas a partir seus paradigmas que não comportam uma mente livre como a de Bella.
"Um dos aspectos mais repulsivos da falsidade espiritual é a implicação usual e sutilmente insinuada de que, afinal de contas, alguém "sofreu muito"."
Alan Watts
"Na esfera mais íntima da vida pessoal, o problema é a dor de tentar evitar o sofrimento e o medo de tentar não ter medo." Alan Watts
O desconforto e a curiosidade são os propulsores dessa personagem para o movimento da vida e para se aproximar cada vez mais de sua própria história, que ela aos poucos descobre, é agora de uma mulher que não mais vive nela.
Para mim o que fica não são apenas muitas reflexões e questionamentos desencadeados pelo filme, mas uma profunda esperança ao ver um pensamento tão avançado utilizando as ferramentas artísticas do cinema para deixar uma pitada de provocação e ampliação de consciência.
Quem seríamos sem tabus e convenções? O que realmente tem valor para nós? Será que nós mulheres temos claro isso dentro de nós? Ou ainda validamos o mundo e a nós mesmas por réguas invisíveis criadas por homens e leis domesticantes? Um ser profundamente ético e totalmente amoral, uma alma viva e em desenvolvimento continuo.
“ A alma é o único fenômeno imediato deste mundo percebido por nós, e por isto mesmo a condição indispensável de toda experiência em relação ao mundo.” C.G.Jung
Dedico esse texto a todas as criaturas me ajudaram a recriar novas existências como Godwin, aquelas que se uniram a mim respeitando e amando minha liberdade como Max. Às tantas Marthas que me trouxeram luz à consciência como quem sempre entrega um novo livro para continuar descobrindo o mundo acompanhada. E é claro, aos Duncans que me ensinaram a reconhecer o que não é verdadeiro intensificando minha fidelidade a mim mesma, e tantas outras criaturas que nem imaginam, mas que transformaram meu caminho no mundo!
Comments